terça-feira, 2 de junho de 2015

Cristalizada




CRISTALIZADA

Meu corpo afunda-se
Neste turno noturno
O cansaço abraça-me
Esmaga-me
Esmago o trabalho com o meu cansaço

Cristalizei-me em sonho
Pesadelos medonhos
Mordi um pedaço de vidro
Com forma de pão
Caiu no meu estomago
Partiu-se em mil pedaços
Afiados

Tenho fama de ser de lata, com lata
Meu corpo age mecanicamente
Ainda tenho odor fedorento
...a gente
É o suor do trabalho
Que diz a quem me paga
Que tenho coragem
O quanto valho...
Quando não trabalho não ganho
descristalizo-me em lágrimas 
Muito amargas
Não dou orelhas a ninguém
Descubro maroscas
Nas minhas costas
Não pensem que me verão 
Dar o último suspiro 
Só porque sou mulher 
Mas nada tenho de cusca 
A mim ninguém me intruja
Meu olhar é duro e mortiço
Os olhos têm cor de abismo 
Dão tudo pela fieira
São tão pelintras como eu
E mostram-se tão finas
Afinam a voz no coro de igreja
Rezam, rezam contas do rosário 
Com contas penduradas 
Em todo o lugar

Sou de cara lavada e levantada
Poderei passar fome
Mas a ninguém devo nada
Lá vai mais um copo
Para esquecer a amarga e desgraça
Não sobrevivo "por dá cá aquela palha"
Vivo em linha reta, quebradiça 
Durmo ereta e resisto
Para não cair num abismo
De areia movediça

Que vida excitante
De encantos tamanhos
Não me abracem
Que vos traço
Sou feita de vidro afiado
Não sou língua de trapo
Descristalizem-me o sabor amargo
Arranjem-me trabalho!...

Até Ontem

Ana Rosa

Sem comentários:

Enviar um comentário