sábado, 25 de fevereiro de 2017

Apenas Eu






Apenas eu
(...) Trilhava caminhos de terra alagada
Numa mão, trago meu coração
Noutra, o perfume de toda a vegetação

da madrugada...
Trago meu olhar um lírio, 
O mais belo e perfeito, bem cedo colhido, 
entre os juncos do riacho
Chorando pingos de geada
As manhãs, são planícies abrigadas!
Ninhos em vales de montanhas vastas!
As aldeias, vidas com casas 
Ainda estremunhadas, mas já acordadas
As casas, de neve branca caiadas
As vidas, são telhas com alma, 
Pingando luz lisa, em gotículas de água 
Como se nuvem parisse suor e lágrimas 
As montanhas, recolhem suas sombras
Guardando-as em sua abada.
--Quando vier apenas eu
--Não fales, não digas nada
--Olha-me, como lírio por ti colhido
--Sente-me, em seu cheiro emanado
--Algum dia o poderias ter tido
e eu a ti to poderia ter dado!
--Abraça-me, simplesmente abraça-me
--Surpreende-me, nos teus instantes raros 
de terra em divagares...
Como lírio que acorda 
À minha passagem e se me empresta
Antes de chegares (...)


Amizade -2











Arte Kemal Kamil



Deixa-me partir










Deixa-me partir

Deixa-me partir!
De mãos vazias, sem nada
Com minha profecia em verso, sem rima ...
De alma descarnada
Deste corpo à vida acorrentado
Moribundo, frio e solitário
Deixa que minha sombra tombe
Sobre todas as madrugadas, 
Inquietas e em sobressalto 
Sobre pedras frias, das ruas passeadas 
Onde tantas vezes nelas tombei, 
Sem que alguém me tenha levantado.
De mim, ninguém sabia nada 
Era somente aquela que falava 
Com língua enrolada 
Palavras que ninguém entendia
Que naquela rua deserta seguia 
Na noite solitária e escura
Sem saída, 
Acompanhada p'lo poente da dor 
Dor que nunca me abandonou 
E comigo a par caminha, 
Extravasando sílabas de loucura.
É somente sombra minha
Sempre lá estive 
Sem que tenha sido sentida, 
Ou minha voz ouvida,
Nem minha imagem olhada.
Ver-me passar jamais conseguiriam!
Às pedras das calçadas luzidias
Entreguei minha alma escrita
Com negra tinta e aparo de prata.
Numa indiferença rasgada 
De ruas aguçadas, sem fantasia 
Nervuras em forma de casa, 
No fundo de panela negra
A sopa azeda jazia
De fuligem que a ferrugem reclamava.
A fome trancada num quarto uivava
Como viscosa cinza nublada 
Como algo que ressuscita da dor 
E a carrega em seus tecidos 
Como um final de tudo
No inicio de tempestade, 
Culminando em silencioso naufrágio
Deixa-me levitar no espaço
Dar paz à minha carne erupta
Nas crateras profundas das ruas.
Minha carne transformar-se-á em lava, 
Após minha própria combustão
Serei luz de candeia iluminada
Serei a resposta que tanto procuravas
O irreversível que vacila
Como arte que sucumbe,
De cores frágeis,
Livre de músculos e ossos fracos
Em cordões de fumo, 
Num leve bater de asas

Até Ontem

Ana Rosa Cruz

Arte: Aldo Ettore Del Vigo