quinta-feira, 15 de setembro de 2016

AMOR EM VISITA






O Amor em Visita

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra 
e seu arbusto de sangue. Com ela 
encantarei a noite. 
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher. 
Seus ombros beijarei, a pedra pequena 
do sorriso de um momento. 
Mulher quase incriada, mas com a gravidade 
de dois seios, com o peso lúbrico e triste 
da boca. Seus ombros beijarei. 

Cantar? Longamente cantar. 
Uma mulher com quem beber e morrer. 
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave 
o atravessar trespassada por um grito marítimo 
e o pão for invadido pelas ondas - 
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes. 
Ele - imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento 
de alegria e de impudor. 
Seu corpo arderá para mim 
sobre um lençol mordido por flores com água. 

Em cada mulher existe uma morte silenciosa. 
E enquanto o dorso imagina, sob os dedos, 
os bordões da melodia, 
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue, 
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto. 
- Oh cabra no vento e na urze, mulher nua sob 
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito, 
mulher de pés no branco, transportadora 
da morte e da alegria. 

Dai-me uma mulher tão nova como a resina 
e o cheiro da terra. 
Com uma flecha em meu flanco, cantarei. 
E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue, 
cantarei seu sorriso ardendo, 
suas mamas de pura substância, 
a curva quente dos cabelos. 
Beberei sua boca, para depois cantar a morte 
e a alegria da morte. 

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro 
pescoço de planta, 
onde uma chama comece a florir o espírito. 
À tona da sua face se moverão as águas, 
dentro da sua face estará a pedra da noite. 
- Então cantarei a exaltante alegria da morte. 

Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela 
despenhada de sua órbita viva. 
- Porém, tu sempre me incendeias. 
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite 
imagem pungente 
com seu deus esmagado e ascendido. 
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura. 
Entontece meu hálito com a sombra, 
tua boca penetra a minha voz como a espada 
se perde no arco. 
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua 
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo 
se desfibra - invento para ti a música, a loucura 
e o mar. 

Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso, 
a inspiração. 
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa. 
Vou para ti com a beleza oculta, 
o corpo iluminado pelas luzes longas. 
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos 
transfiguram-se, tuas mãos descobrem 
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça 
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou 
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo - 
eu sou a beleza. 
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem 
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada 
beleza. 

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti 
que me vem o fogo. 
Não há gesto ou verdade onde não dormissem 
tua noite e loucura, não há vindima ou água 
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos 
originais. 
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra 
a carne transcendente. E em ti 
principiam o mar e o mundo. 

Minha memória perde em sua espuma 
o sinal e a vinha. 
Plantas, bichos, águas cresceram como religião 
sobre a vida - e eu nisso demorei 
meu frágil instante. Porém 
teu silêncio de fogo e leite repõe a força 
maternal, e tudo circula entre teu sopro 
e teu amor. As coisas nascem de ti 
como as luas nascem dos campos fecundos, 
os instantes começam da tua oferenda 
como as guitarras tiram seu início da música nocturna. 

Mais inocente que as árvores, mais vasta 
que a pedra e a morte, 
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto, 
tinge a aurora pobre, 
insiste de violência a imobilidade aquática. 
E os astros quebram-se em luz 
sobre as casas, a cidade arrebata-se, 
os bichos erguem seus olhos dementes, 
arde a madeira - para que tudo cante 
pelo teu poder fechado. 
Com minha face cheia de teu espanto e beleza, 
eu sei quanto és o íntimo pudor 
e a água inicial de outros sentidos. 

Começa o tempo onde a mulher começa, 
é sua carne que do minuto obscuro e morto 
se devolve à luz. 
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras 
com uma imagem. 
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito 
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade 
uma ideia de pedra e de brancura. 
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves, 
que te alimentas de desejos puros. 
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola, 
a sombra canta baixo. 

Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua, 
onde a beleza que transportas como um peso árduo 
se quebra em glória junto ao meu flanco 
martirizado e vivo. 
- Para consagração da noite erguerei um violino, 
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada 
darei minha voz confundida com a tua. 
Oh teoria de instintos, dom de inocência, 
taça para beber junto à perturbada intimidade 
em que me acolhes. 

Começa o tempo na insuportável ternura 
com que te adivinho, o tempo onde 
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde 
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida 
ingénua e cara, o que pressente o coração 
engasta seu contorno de lume ao longe. 
Bom será o tempo, bom será o espírito, 
boa será nossa carne presa e morosa. 
- Começa o tempo onde se une a vida 
à nossa vida breve. 

Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna 
salina, imagem fechada em sua força e pungência. 
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado 
em torno das violas, a morte que não beijo, 
a erva incendiada que se derrama na íntima noite 
- o que se perde de ti, minha voz o renova 
num estilo de prata viva. 

Quando o fruto empolga um instante a eternidade 
inteira, eu estou no fruto como sol 
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada 
matriz de sumo e vivo gosto. 
- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices 
das nuvens florescem, a resina tinge 
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã. 
E estás em mim como a flor na ideia 
e o livro no espaço triste. 

Se te aprendessem minhas mãos, forma do vento 
a cevada pura, de ti viriam cheias 
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses 
em minha espuma, 
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso? 
- No entanto és tu que te moverás na matéria 
da minha boca, e serás uma árvore 
dormindo e acordando onde existe o meu sangue. 

Beijar teus olhos será morrer pela esperança. 
Ver no aro de fogo de uma entrega 
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus 
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante 
do meu perpétuo instante. 
- Eu devo rasgar minha face para que a tua face 
se encha de um minuto sobrenatural, 
devo murmurar cada coisa do mundo 
até que sejas o incêndio da minha voz. 

As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso 
jovem da carne aspiram longamente 
a nossa vida. As sombras que rodeiam 
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto 
seu bárbaro fulgor, o rosto divino 
impresso no lodo, a casa morta, a montanha 
inspirada, o mar, os centauros 
do crepúsculo 
- aspiram longamente a nossa vida. 

Por isso é que estamos morrendo na boca 
um do outro. Por isso é que 
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento 
da brisa, no sorriso, no peixe, 
no cubo, no linho, 
no mosto aberto 
- no amor mais terrível do que a vida. 

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz 
o perfume da tua noite. 
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua 
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre 
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca 
ao círculo de meu ardente pensamento. 
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso. 
Em cada espasmo eu morrerei contigo. 

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente 
das urzes, um silêncio, uma palavra; 
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua 
vermelha. 
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos, 
casa de madeira do planalto, 
rios imaginados, 
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas 
maravilhosas da noite. Ó meu amor, 
em cada espasmo eu morrerei contigo. 

De meu recente coração a vida inteira sobe, 
o povo renasce, 
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora 
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma 
de crepúsculos e crateras. 
Ó pensada corola de linho, mulher que a fome 
encanta pela noite equilibrada, imponderável - 
em cada espasmo eu morrerei contigo. 

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se 
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro 
da tua entrega. Bichos inclinam-se 
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta 
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com 
o lento desejo do teu corpo. 
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo 
eu morrerei contigo. 

Herberto Helder
" in 'O Amor em Visita"

Publicado por:

Conceição Ana Rosa Cruz





ABSOLUTO





ABSOLUTO

Quando metade de mim entrego
Num meu ato de amar,
Nada de mim perco!
A quem me entrego,
Entrega-me também
Uma sua outra metade!

Há em nós, noção do absoluto
Entrega sem reservas e total
Universo da plenitude astral
Um bem estar pleno
Que em tudo se completa
Uma verdadeira cumplicidade
Que um futuro quer projetar!

Presente neste ato de entrega
Está o conceito de igualdade!
O sentir de felicidade e saber
Que ao meu lado está,
"é sangue do meu sangue,
carne da minha carne"
Olhar único, para o mesmo alvo
Sem que por um só instante
Desse mesmo objetivo comum
Nosso olhar seja desviado!

Relógio de ternura
Que as horas depura...
O tempo avança
A pele do rosto se costura
Torna-se lembrança.
A entrega é sempre igual...
Com doçura e perseverança!

Até ontem

Ana Rosa Cruz

Arte: Kiyo Murakam





quinta-feira, 1 de setembro de 2016

O Sonho








Fosso




FOSSO

(...)E de repente lembrei-me
Que ainda sabia sorrir
Soltei o freio da alma
Deixei-a renascer e florir
Desembrulhei-me da roupagem
Que no fosso me aconchegava
Libertei-me da enrolada corda 
Que meu pescoço apertava
Arregacei as mangas da linguagem
Despi a indumentária do rigor
E a maquilhagem que me mascarava
Que me tornava um ser crispado
Absurdamente diário
Tudo estava invertido
No concreto do avesso
Voltei, para de novo começar
O que deixei ficar inacabado
Agora sem "aspas" no meu andar
Vesti-me de cor de carne
O gargalhar de mim, abriu portas
Ao meu insonso rosto
Finalizei a pena como reclusa
Que a mim mesmo me condenei
Caminho a par com a nudez
Faço parte de mim e de todos
E de coisa nenhuma
Não me devo a ninguém!(...)

Até Ontem

Ana Rosa Cruz

Arte:Mark Spain





Adaptação






Portas do Sol





PORTAS DO SOL

Rodam as portas do sol
Nossa carcaça obriga-nos a comprar
O ingresso para o patamar da noite.
Sem pedir licença,
Passamos por uma arcada
Por estrelas iluminada
Que nos incendeiam e apagam a voz
Rompendo a virgindade das palavras
No suor da rude almofada.
Sonhamos claramente a escuridão
Somos a ira fuzilada pelo trovão
A mortalha da sombra tombada
Observamos a negrura dos dias
Sem penas macias
Numa imaginária e rígida retaguarda
O esplendor da mentira da humanidade
No rosto fusiforme do palhaço,
Abrindo seu sorriso ao mundo exterior,
Amassando no interior a sua dor
Que finge esquecer de revelar
A miséria mística
Dos minutos que as horas embalam.
O mundo, transforma-se
Na cor de todas as cores.
O centauro colorido,
Coroado de sonolência
O tal sonho hipotético que compramos
Como uma promessa de eternidade
Na sua aspereza natural
E tão especificamente mortal
Na garganta que a noite em si entala
Retrato em movimento,
Da carne sonolenta queimada
Até que nasça o dia,
Depois do dia, depois da noite lenta
Sem nos prometer que ao nascer
Seja da mesma cor.
O novo dia é visto,
Por quem o deseja e quer ver
Torna-se um cliché de banalidades
Como as portas do sol, emperradas,
Meio abertas, meio fechadas...

Até ontem

Ana Rosa

Arte: Mariska Karto







Escalada






Conversa da Treta





CONVERSA DA TRETA

Quando me questionam
"se eu sou não sei o quê,"
Eu respondo de imediato,
"que sou isso mesmo"

Ana Rosa




Morte






Grilhões





GRILHÕES

Choros noturnos
As feridas tomam forma de grilhões
Nunca chegam a ser cicatrizes
Estão sempre em carne viva
Marcam a carne bem fundo
Abrindo em cada gemido uma ferida

É escravo na sua dinastia
Abraça o trabalho arrastando grilhões
De dia inclina-se em mordomias
À noite o seu grito é de dor 
O sangue jorra-lhe das feridas 

Choro de uma grande angústia
À noite ela brota e domina
Chora raiva escondida
É escravo e serve de dia
À noite é o rei da dor 
Na sua própria dinastia

Vida que se gasta com castigo
O passar da idade é abrigo 
Aconchega-se num canto
Canta com voz grossa e terna
Canções em seu dialeto materno
Aliviando dores de outros enfermos

A noite é ferida aberta
De onde jorram as entranhas
Feridas de grandes guerras
Guerreiros exaltam façanhas
Havendo homens em guerra 
A cor, ainda é relevante

Errático engano
Preto é irmão de branco 
Porque distinguir tanto?
Ser preto ou branco 
Ambos partilhamos uma cor
Da qual muito gostamos
O vermelho do nosso sangue!

Que se pare de questionar a cor
Em tudo somos iguais
Até nos grilhões que provocam dor

Até ontem

Ana Rosa


Casa na Rua





CASA NA RUA

Ao entardecer...

Vai começar a andança 
Dolorosa de viver
Procura descodificar vultos
Em estado canónico, anónimo
E questiona-se a sua preferência
Por aquelas andanças

Dissolve-se o silêncio na noite
As ruas tornam-se frias
Acalmam-se as idas e vindas
Em ruas imundas
Iluminam-se as pedras sujas da rua
Aí o vício abunda
Adocicada mistura
Vestida de forma nua
A vislumbrar a tortura
De fome com fartura

Solta-se a penúria...
Fecha-se à chave na rua
Mistura-se com a atmosfera húmida
Procura-a na circunstância dum lugar
A encontrou vagueando no tempo
Naquela rua vazia 
Tão sorumbática e só!

Acordam as almas do vício
Castigam seus corpos
Já rasgados ou delidos
Cumprem regras
Do alinhamento do astro maior
Num movimento de incompreensão
Em torno de si mesmo
Também nada se questiona

Os corpos, hoje...
Já não passam da inércia.
Manhã acorrentada
Na sua órbita alcoolizada
De manhã serão corpo
Do eterno vómito
De quem à noite
De nada se privou!
Entornam-se nas calçadas
Ajudam-se a parir em ideais

Inevitavelmente...
A toda a hora, nascem 
E morrem estorvos
Encostados a escombros
Que lhes servem de encosto
Na zoeira desta rua
De preliminares!...

Até Ontem

Ana Rosa



Morte



MORTE

Morte... como és tão forte!
Não há corpo que te resista 
Nem espada que te corte
És sedenta e mórbida
Com ludibriante retórica 
Não deixando contudo
De seres bem nobre
Tua passagem pelo mundo
Deixa-o mais pobre
Simbolizas o fracasso
E também a má sorte
Tens uma longa história.
Acendes os candelabros
De ouro, prata ou cobre
Como amuletos de vitórias.
Ao teu poderoso querer 
Ninguém lhe faz frente!
De meus braços tiras
Meu mais precioso ente
Deixando-me empobrecida
Tens precisão em tirar a vida
Precisão muito cirúrgica
Por todos os seres és respeitada
És o mistério da finalidade
Sem preferência por sexo ou idade.
Profecia sangrenta
O fim do caminho
Tudo contigo acaba
Mentira, sobranceria e vaidade
O princípio da dor da saudade.
Da carne serás
Um profético carrasco
Que com teu sublime prazer
Ergues o teu machado
És relíquia da antiguidade
Pavor da humanidade
És o símbolo do nojo e oblação
Resolves dores em aflição
És um verdadeiro credo
Sem qualquer contradição
Tua aparição não carece
De qualquer apresentação
És árida e fria
Cheia de dignidade
Impões teu carisma
Justiceira empunhando espada.
Chegas docemente
Como gélida aragem
Dominas e abres feridas
Provocas sangramentos
Que se perdem pelos tempos
E por todas as paragens
Abraço o corpo que pari
Já sem vida
Abandono-me ao teu capricho
Leva-me também contigo!...
Aconchega-me em terra lavrada
Terra solta é menos pesada
De mim só levarás metade
Nunca de mim a totalidade.
Para ti não restará nada
Serei somente um retrato
Para matar a saudade 
Que de mim fica!
A vontade de contigo lutar 
é infinda! 
Minha carne, por ti 
não será consumida... 
Oferecer-me-ei à fornalha
Unicamente restará para ti
Um punhado de cinza

Até ontem

Ana Rosa