sábado, 23 de julho de 2016

Raivosa Devoção





RAIVOSA DEVOÇÃO

Por ali, o tempo parou
Cinzentas e roucas badaladas
Tom musical enferrujado
Ferrugem que corrói vidas
Sombreadas e envelhecidas
Reflexos de saudoso passado
Catatonismo e olhar vazio
Em horizontes longínquos
Num entardecer consentido

De asa partida e volta prometida
A vida foi-se para outra estada...
Sem portas entreabertas
A sete chaves, se fecharam casas
Como jazigos de última morada
Sem vivalma!

Só o silêncio ali tinha morada
Terra sem nada para dar
O futuro partiu calmamente
Mas de forma pensada
Partiu com passo apressado
Antes da cinzenta madrugada

Era grande a míngua
A fatia de pão, de cada dia
Partia-se cada vez mais fina...
Vidas em cor cinza pesada
Em balanças desafinadas
Sentiam o peso do desequilíbrio
Das vidas que por ali trilhavam
Criando um só trilho
Em tom de pobreza acinzentada
Esvaindo-se em poeira
De cor cinza parda

Com faces enrugadas,
Por lágrimas lavadas
Naquela fatídica madrugada
Muitos dos que ali ficaram
Vestiram vestes de mortalha
E não mais as tiraram

Marcados...
Por necessidades e desgostos
Almas de saudades acinzentadas
Marcadas por ferros em brasa
Esperavam ansiadas novidades
De perguntas feitas
Sem respostas dadas!

Em cada casa, rua ou arcada
Havia abandono e desgaste
Enfatizada ruína fotografada
Em cada dia mais degradada

Até o sol se esquivava
De iluminar tais paragens
Afugentado pela pesada aragem
Lugar frio, sem brilho e assombrado
Não era um lugar à parte
Era igual a tantos outros
A tantos outros iguais
Lugar onde a alegria de viver
Ficou em quarentena de ausência
Numa sistémica doença de tristeza!

Partiram...
Sem regra, no trilho da sorte
Sem única moeda na carteira
Suas vontades de tudo
Eram tudo, menos pequenas

Partidas que não voltaram mais
Sem carta ou palavras
Com alma cada vez mais acinzentada
Já nada contrastava com nada...
A alma alargava-se de saudade
A quem dos seus falta sentia
A saudade não desejava ir em frente
Ela desejava voltar
E apagar a dor no seu peito fervente...
Em trilhos vagueavam ao longe
Lágrimas de saudade do antigamente

Para nada havia horário!
A vida de quem ficou
Regia-se por um pequeno rádio
Ouviam "O Emigrante"
Velho e gasto fado
Seguiam o poema com uma lágrima
No rosto velho e enrugado.

Há muito que não ouviam
O som das horas badalar
Do sino do relógio enferrujado
Do desprezado campanário.
A noção do tempo via-se pela cor
Cinza escuro ou cinza claro
Olhar sombrio acinzentado
Olhava o trilho da vida que partiu
E já devia ter voltado!
Evadiam-se em pensamentos abstratos
Que deles se esqueceram
De ainda estarem presentes

Aldeias vazias, com sintomatologia
De uma anemia ou estigma 
Que sangrava diariamente
Em abertas feridas.
Quando a saudade os seus reclamava
Num anoitecer demente sem gente
Sem o calor humano de antigamente
Gente pobre de cara lavada
Que em lágrimas se lavavam

De tudo havia falta
Só não faltava a saudade.
Veneravam no chão o rasto da partida 
Como sendo algo sagrado
De uma raivosa devoção
Que de raiva e saudade se alimentavam
Numa localidade onde prevalecia
Cinza escuro...
Cinza claro...

Até Ontem

Ana Rosa Conceição Cruz





O Hino da Alegria








O Poeta é Belo





O POETA É BELO

O poeta é belo como o Taj-Mahal
feito de renda, mármore e serenidade...
O poeta é belo, 
como o imprevisto perfil de uma árvore
ao primeiro relâmpago da tempestade...
O poeta é belo porque os seus farrapos
são do tecido da eternidade!

Mário Quintana 

Publicado por
Ana  Rosa Cruz





Amanhecer





AMANHECER

Apagam-se as luzes
A escuridão ilumina o meu espaço
Surge o meu negro pássaro
Em voo picado, pensamentos purpurados
Entrego-me ao seu voar, sem máscara
Na área de um vazio, sem nada
Começa o meu desabafo com a vida
Monólogo trifásico
Onde somente existe um palhaço
Eu, a raiva e um cigarro!
O fumo, estende suas asas e evade-se 
Voa pela janela do quarto
Absorção ávida da nicotina
Estendo minha ácida vida ao vício
Naquele aconchego fatal
Entre uma e outra passa
A vida esvai-se, nas dilatadas retinas
Desabotoo os botões sombrios da alma
Pergunto a razão de estar vivo
Qual a razão da minha miserável vida?
A resposta, está em todo o lado
Num silêncio calado de mais um cinzeiro,
Cheio de inconscientes piriscas, amortalhadas
A um papel amarelecido e amarrotado
Que comigo trago no bolso da alma.
Entorno sentimentos em palavras
Liberto meus fantasmas!
No ambiente lúgubre duma vela
De chama moribunda, quase apagada
Sentimentos reprimidos e magoados
Irrealizados e com mágoas bem antigas
Meu retrato evapora-se pelos poros
Tão longe e perto de mim, abrem feridas
Em momentos fúnebres, ressuscito mortos
Procuro-me no que está escrito
Letras sumidas, palavras invertidas
Ou talvez alucinadas!
Encontro-me nos espaços em branco
Brechas no tempo, que ferem 
Como afiada e cortante navalha
Misturo lágrimas que mancham
A minha forma de ver o mundo
Gritos de silêncio entalados na garganta
Quem me dera, deles fazer lembrança
O tempo esgotou a noção de esperança
Tenho noção que há espaço para mim
Neste mundo escuro e obscuro
Vivo num vazio, sem eco
Não tenho a força da parede
Sou o eco que se encerra em si mesmo
O trifásico!
Eu, o espaço apertado e o cigarro...
Até que amanheça desabafo e passo-me
Sem que algo, passe por mim
Passo-me naquele quarto apertado!

Até ontem

Ana Rosa






A Regra das Réguas





A REGRA DAS RÉGUAS

Tento andar em linha reta, tropeço. 
Nasci com régua de poeta, confesso. 
Minhas ideias são turvas, 
sempre erro minhas metas, 
são retas as minhas curvas, 
são curvas as minhas retas. 
Apesar do meu cansaço, 
meus sapatos correm léguas, 
tento seguir os meus passos, 
mas quebro a regra das réguas. 
Só me guio por radar, 
minha nau tem vários portos, 
por mais que eu queira acertar, 
meus versos são sempre tortos. 
Tento andar em linha reta, tropeço. 
Nasci com régua de poeta, confesso.

Luiz Medina.

Publicado por Ana Rosa Cruz



Pontos e Traços









quarta-feira, 6 de julho de 2016

Hino





HINO

Tudo vos deixarei...
Deixar-vos-ei a mais bela herança, 
Que alguém pode receber!
Aceitai pois esta lembrança
Para que de mim, 
Vos possais sempre recordar!
Deixar-vos-ei todo o meu luar,
O brilho das estrelas, 
Para que vossas vidas, possa abrilhantar...
Ensinai a todos os homens,
Quando eu já cá não estiver, 
Como vê-las!
E não, simplesmente, as olhar...
Ensinai também, a amar como eu vos amei
Amar, é dar e receber!...
É o dom maior, que alguém pode ter!
E sempre assim será, 
Sempre que o homem quiser!
Se de vossos olhos alguma lágrima brotar,
Transformar-me-ei em mágica lamparina
E vossos caminhos abrirei
Para vossos sorrisos iluminar
Para que cada dia de vossas vidas, 
Seja pleno de luz e alegria
Que tenha eu o dom,
De vos poder alegrar, mais ainda...
Guiar-vos-ei até à mais alta colina,
Para que mais perto as estrelas, 
Possais contemplar...
Dar-vos-ei o dom da palavra,
Para pedir e nunca ordenar... 
Dar-vos-ei sapiência e sabedoria,
Para um hino criarem
"O hino da alegria"
Bastará somente que tenha sorrisos
Poderá, ser em prosa ou poesia...
Com, ou sem rima
E em surdina, largai-o lá bem em cima,
No alto da colina, 
Onde o céu começa e a terra termina!
Como poemas de ternura infinda 
Soltem-no, como hino de alegria, 
Como um belo raio de sol.
P'la manhã, toda a terra ilumina... 
Sem que nelas exista tristeza alguma
Vossas escuridões hão de aclarar,
As noites, serão dias, infinitos
A tristeza de vossos corações,
Hei de para sempre sarar.
Se houver silêncio em vossas vidas
Não caiam sobre a terra, como cinza ardida...
Da inercia, a sabedoria nunca germinará
Levantem-se e caminhem
Cá estarei mais uma vez e de novo,
Para vos ensinar a caminhar!
Se de novo tiverem de começar
Lá estarei à vossa espera
Com a mão estendida
Para vos amparar
Ajudando em tudo e de novo
A recordar o que haveis, esquecido!
Se sobre vós chover línguas de fogo,
Ouçam o som da chuva,
Que à terra há de dar de beber…
É o embalar da natureza
Anunciando que tudo o que morre, 
Há de novo nascer!
Lembrai-vos sempre que para colher,
Há que primeiro, plantar...
Para que os homens possam aprender
Que depois do ponto final,
Sempre se pode recomeçar
Basta desejar e querer!

Até Ontém

Ana Rosa Cruz Pinto





Vómito





VÓMITO

Descem-me à boca as palavras
Soltas das isquemias de raiva
Rasgando-me a garganta
Vomito-as em cima da minha mão
Leio-as uma a uma
Como cerne da minha questão.
Elas pensam por mim...
Sabem tudo o que não sei
São o meu vómito
O meu mau estar
O reflexo da minha indisposição
O que resta da minha existência
Esquecida e indisposta
Decomponho-me lentamente
Sem me aperceber
Sem que nada exista
Para comprovar a existência eterna
Sem perdão
Ninguém tem o dom de perdoar
Esta indisposição da minha razão
A decomposição extingue-se
Com o ponto de interrogação
São sempre iguais as respostas
Quando perguntadas à memória.
Como tudo é tão diferente
Sem deixar de ser o mesmo
Como se transformasse noutra
Sem deixar de ser ela mesma
É tudo fruto da mesma árvore
Com frutos que se decompõem
Sem deixarem de ser "os prediletos
do conceito da necessidade
de todos e de ninguém".
Decompostos pelo sentido da saliva
De forma selvática e feroz
Que amargam no meu esquecimento
Arranhando a garganta da idade
Tocando badaladas azedas
De tantas incertezas.
Pergunto às palavras vomitadas
Como vai ser depois
De tudo continuar na mesma
Quando minha imagem
Já não fizer plagio
Há no meu esquecimento a lembrança
Guardada em mim lá longe
Na minha lembrança extasiada...
E tudo morre no meu nome!

Até ontem

Ana Rosa Cruz Pinto



Canção do Subúrbio





CANÇÃO DO SUBÚRBIO

Cubata velhas vermelhas
Do solo velho vermelho,
E a chuva tamborilando
Por cima do zinco velho

E a minha velha lavando
Na velha celha cantando
Já não há mais folhas secas
Sobre o zinco das cubatas

Umas o vento as levou
Outras são velhas canoas
Sobre as vermelhas lagoas,
Que a chuva improvisou
E onde o neto da Ximinha
Chapinha contente e nu


Eleutério Sanches - Angola

Canção Festival da Canção de
Luanda - Angola de 1978

Canção do Suburbio - Eleutério Sanches
Eleutério Sanches, Pintor, Poeta, Compositor e Interprete, e é licenciado em Pintura pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa


PUBLICADO POR ANA ROSA PINTO