quinta-feira, 16 de julho de 2015

Eutanásia





EUTANÁSIA

Os corvos esvoaçam lentamente
Procuram nos nossos destroços
Íntimas feridas de pontas soltas
Remorsos...
Por não deixar acontecer
O bem que se poderia fazer
Sonhos aprisionados 
Que acabam por cair e apodrecer
Numa noite sem amanhecer

Sondam-nos com seu penetrante olhar
Impedem-nos de gritar
O grito é abafado pelo maldito corvejar
Provocando um arrepio de mau estar
Veem para além de nós
Leem o nosso resumo devasso
Sentem nosso lamentar
O nosso medo
Sem qualquer arrependimento
Leem em nossa alma íntimos segredos
De partir, não voltar e querer ficar
Sentem a turbulência em nossas almas
Aquietam-se e esperam pacientemente
Para no limite nos agarrar e cegar

Na esquina onde dobra a hora
A morte nos implora          
Como praga rogada
Que aos poucos nos esmaga
São necrófagos....
Da nossa realidade morta

O tempo passa por nós 
Sem permissão
Desfruta-nos e decompõe-nos
Tornamo-nos carniça apetecida
Para estes seres negros
O tempo não passa
Vão esvoaçando
Cheios de mortal graça
Sentem a abundância de nós
Restos que a cada dia escasseia
Nosso residual mortal    
É o festim da passarada
Aqui, a morte é assistida
Com apetite, pompa e circunstância


Até ontem

Ana Rosa



segunda-feira, 13 de julho de 2015

Embrião






EMBRIÃO

É vaga de ar fresco
Duma vida ainda indecisa
Nos ímpetos contida
Sem entender ainda 
O que significa a vida

Vaga ainda questionada 
Embrionária...
Partícula ainda incompleta
O princípio de tudo
E ao mesmo tempo 
O princípio e o fim de nada

É a fúria do querer acontecer
Fazer parte da vida
Parte de todo o sentir
No princípio, meio e fim
Do nascer e morrer

É um invasor 
Que se afogou nos oceanos 
Gotas de fluidos trémulos
Por implantar
Que se deixou em silêncio
Representando a dor
Do que se deixou de escrever
Por falta de tempo
E por contratempos

É partícula do impasse
Atrasa a hora de nascer
Na imensidão do mundo da graça
Não tem espaço 
Neste local infértil
Útero seco e inútil
Presente mas escuro
Escuro como breu
Sem esperança de dar à luz
Nem oportunidade de ouvir
Uma canção de ninar
Nem escutar histórias
"De palavras que nunca te dirão"

Até ontem

Ana Rosa


quinta-feira, 2 de julho de 2015

Pão Nosso







PÃO NOSSO

Sinto em ti o passar do tempo
Saudoso cheiro a pão quente
Penso-te como um indefinido
Longínquo mas sempre presente 
Com clemência num pedido
Para que a ceifa fosse feita

Lá longe no tempo
O vento tocava-te e cedias 
Em inclinações e dependência 
Belos grãos de trigo em espiga
Que nossos olhares deleita.
Fundo-me em ti 
Como um termo e começo 
De colheita urgente 

Numa antiga melodia
Cantam-se louvores
Em tua honra e existência
Com infinita harmonia e beleza
Cantiga que se cantava melhor
Com barriga não vazia
Padecerás numa mesa farta
Ainda vazia por enquanto
Nela sem nada

Tempo de colheita... 
A foice ceifa-te
Abrindo feridas de morte
O que dará vida a muita gente
Nossa mesa enfeitará
A fome findará
É sublime a tua presença 
Em divinas fatias
Pão numa mesa
É sinal de alegria

Veem-me à mente receios
Que tua falta se sinta!
Entristecida e envelhecida
Penso-te com saudade
Lembro-te já moído
E trabalhado em massa finta

Será feito pão na fornalha
De forma breve e serena
Á beira do forno alguém cantava!
A massa era abençoada
Nada se desperdiçava 
Em cada ceifa que findava.
Era um tempo de alegria
Alimento eterno
Para o corpo e o espírito 
Tornando faces mais rosadas
Nos rostos de homens famintos

Ceifa concluída 
Pedaços de escrita amarelecida
Da cor de triga-milha
Pedaços de mais uma colheita
Com mais sabedoria
E menos tempo de vida
Como espiga de trigo
O pão nosso de cada dia

Até ontem

Ana Rosa