segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Noite





NOITE

A felicidade já aqui não habita
Alegria era sentimento que não tinha
Sentia que não me pertencia.
Tentava alcançá-la
Com todas as forças que tinha.

Para meu descontentamento
Ela de minhas mãos fugia
Para mim, a alegria não passava 
De ressaca paliativa
Das bezanas da noite
Que se prolongavam pelo vómito do dia! 
Era algo que todos podiam ter
Eu não podia...
Não tinha tempo a perder
Não perdia tempo com os dias
Que nada tinham para me dizer!

Colecionador de realidades pendentes...
Colecionava contratempos
Que apressadamente escrevia 
Entornava sentimentos nas palavras
Entre páginas amarrotadas 
De sombrias azias 
Em meu bloco de notas
Com minha velha e obsoleta
Caneta de tinta permanente!
Extensões da minha mente
Que nada tinham de púdico
Somente minha alma sente
Pensava nas coincidências....
---Garrafas de tinta permanente
---Tem graça, tinta engarrafada!
---Tudo saía perfeito
Mesmo que escrevesse de gatas...
Expressões de habitáculos
Onde na noite o corpo descansava a alma

Labirintos e limbos
Uns latentes, outros bem ativos
Minha vida sempre foi em banho-maria
Ente uma água das pedras
Que curava a azia
E uma garrafa que já foi cheia
E está agora vazia
A noite traz consigo nevoeiros cinzentos
Sargetas entupidas como sempre
Pelas chuvadas em Janeiro 
Calçadas escorregadias
Refletiam as dores, barulhos e odores
Daquele bairro inteiro
Com o nascer do dia
A humidade desaparecia 
As outrora estrelas luzidias
Tornam-se em estrelas cadentes
Que caíam violentamente
Sem que se fizesse pontaria

Fui-me dividindo em olhares contemplativos
Enquanto fumava o meu cachimbo 
Observava o meu próprio limbo
Ao olhar a vida que os outros tinham
As imagens no espelho confundiam-se 
Entre mim e os outros no mesmo raquitismo

Bem bebido, no dia a dia, pela noite dentro 
Atrevia-me em inconveniências
Nos silêncios das minhas canetas...
Perdido entre noites curtas ou compridas
Observava dicotomias pendentes
Vislumbrando minhas metades no tempo
Entre baldes de água fria
Intercalados com água quente
Em paradoxos que conter não conseguia
Fazendo do ilógico, minha profecia...

Até Ontem

Ana Rosa - Nov. 2015





Ira





IRA

Olho a vastidão do horizonte
Lembro com tristeza
O que é hoje, jamais foi ontem!
Piso esta terra do hoje
Com um amargo gosto
Apreendido pela minha língua
Como se bífida ela fosse

Sinto amargura na boca plantada
Nos olhos uma lágrima caída
O coração dói e sufoca
A vastidão do horizonte provoca-me
A terra que era vida, transformou-se
É agora simples areia estéril e oca

Ali, tudo germinava
Todos se bastavam e tudo tinham
Se algo faltava, o vizinho lá estava
A palavra não nunca existia!
Alegre dia de São Martinho
O pão, que tão bem nos sabia
Bebia-se o vinho ou jeropiga
Em copos cheios de alegria
Néctar que nos transportava
Para um mundo de fantasia
Inspirando a novas melodias
Com castanhas assadas
Num braseiro vivo
Bem quentinhas.

No meio de tanta alegria
Todos se esqueciam
Das dolorosas feridas
Provocadas pelos ouriços
Que as castanhas envolviam
Tudo lembro com saudade
Da forma como do tão pouco
Tudo se partilhava
Com bom grado e alegria

Há somente os vinhedos da "ira"
Tudo agora é diferente
Esta terra não é a minha
Olho-a hoje abandonada
Enferma e ressequida
É agora a terra do inferno
Terra demoníaca
É de raiva o néctar da videira
Revolta incontida
Agora nada lá cresce
Nem uma erva daninha
É agora uma terra sem alma

Deixou também de se parecer
Com aquela terra linda
Como terra prometida
Nenhum corpo lá encarna
Antes, tanta vida ela tinha
É agora lugar de areia movediça
Faz de mortalha a quem a pisa
Nem uma semente germina
O que se semeia apodrece
O horizonte encurtou e padece
O ontem foi-se embora
Acomodou-se no hoje
A realidade é agora este sonho...
Medonho...
Como se tudo sonho fosse!

Até ontem

Ana Rosa






terça-feira, 3 de novembro de 2015

Símbolos






Idiota






Ponteiros







Coligações







Mendicidade






MENDICIDADE

Rua acima, rua abaixo
Sapato alto ou baixo
Passo leve ou apressado
Passo de arrasto lento
De quem já palmilha
Aquelas calçadas
Há muito, muito tempo

Todos passam por eles
Neles ninguém repara
Olhares neles se quedam
Com indiferença é desviado
Mudam seu trajeto
Para o outro lado da estrada
Evitam passar a seu lado
Como se fossem dejetos
Pedinte é sinónimo de sarna!

Deles ninguém sabe nada
Estendem a mão à caridade
São o reflexo dum País
Numa e outra cidade
Hoje e todos os dias
Vestem vivas cores
As da sua nacionalidade
Amarelo, verde e encarnado

São tantos entre muitos
Comem ar e "guita assada"
Mal temperada
Empestam o ar da cidade
Mostrando aos transeuntes
Que representam a liberdade
Cabelo emaranhado
Barba crescida e bem grande
Olhar esbugalhado

Não têm sábados
Domingos ou feriados
Seu dever é diário e cumprido
Faça sol, chuva, vento ou frio
Fazem de qualquer buraco
O seu lar ou abrigo
Gritam alto e bom som
Para os que não querem ouvir
No seu estado de mendicidade
Que também são gente
De pouca carne e muito osso

Não têm natal nem ano novo
Têm tristes sorrisos
Que são dormentes choros
Ninguém os quer ver
Dizem que metem nojo
Só não vê quem não quer
Não são transparentes
Dormem no embalo do relento
Embalados pela chuva e vento
Seu sono é acompanhado
De sopa nem sempre quente
Sem saber o que tem dentro
E de um gole de aguardente

Bem no centro da cidade
São o relicário da pobreza
Marginalidade acrescentada
A muitos mais pobres
De pobreza envergonhada
Verdadeiras estátuas vivas
Duma moderna cidade
Trazem sempre consigo
O estigma da mendicidade

Já de idade avançada
Igual é sempre sua rotina
As mesmas escadas frias 
O sapatear do calçado
Descalças de imaginação
O mesmo fedor sepultado
Olhares de nojo de quem passa
As mesmas mudanças
Para o lado contrário
Que não mudam nada!

É um bom cidadão
Tem cartão de eleitor
Que se mantém virgem 
Imaculado junto ao coração
Por sua pobreza merecer
Da sua nação um louvor!

Até ontem

Ana Rosa