segunda-feira, 27 de junho de 2016

Comédia Fúnebre






COMÉDIA FÚNEBRE

Hoje em sonhos, desci ao meu próprio inferno,
surreal, insano e absurdo hemisfério.
Nesta minha descida, não fui só, mas acompanhada,
por dois coveiros caricatos do cemitério, 
Atrevidamente despertaram meu sono eterno.
Não podia seguir viagem decomposta,
em tal coletivo cortejo fúnebre. 
Uma lambidela e uma gotita de perfume, 
senti-me um autêntico deslumbre.
Tinha como companhia, dois subalternos do diabo,
um de cada lado, de braço dado.
Com seu ar emproado e sisudo, carater austero e inerente, 
a todo o funcionário público de extremosa responsabilidade,
em seu papel e estatuto...
Tinham como missão, entregar minha alma 
a quem lha houvera encomendado, 
cuja finalidade seria alcançar alguns trocados 
Sem que estes, dessem nas vistas às entidades tributárias. 
Como tantos outros, não passavam de reles funcionários. 
humilhados, mal remunerados, a contrato, 
olhados de cima para baixo e de baixo para cima...
Como se, com fita métrica, lhe tirassem as medidas
Faziam expediente na sombra sem declarar ao fisco,
horas extraordinárias...
Um deles com um pé calçado e outro descalço, 
pensando assim poupar solas dos sapatos.
Cada um mais remendado que o outro, 
sem primazia pelo bom zelo e gosto...
Como se tal fato não bastasse, 
um era zarolho e o outro visgolho...
De sobrolho franzido, enrugado e nariz ranhoso, 
expressavam no ato, desconsolação enfática...
O cheiro nauseabundo a sovaco, 
misturado com o odor hipnótico do seu mau hálito...
Sapatos calçados ao contrário, 
sola rota e atacadores desapertados,
junto aos calcanhares, vermes evadiam-se intoxicados...
Aterradores olhos côncavos, com olhares esgazeados, 
mostrando na escuridão seus poucos silhos ralos e encravados, 
como um persistente mau-olhado pensando ver tudo,
como sendo sua primordial obrigação...
Eram iguaizinhos um ao outro, um deles manco, o outro coxo 
Pouca carne e muito osso, salvo uma pequena exceção, 
um deles lacrimejava constantemente, 
Tinha um terçolho no olho esquerdo em fase de crescimento,
Cujo tratamento, consistia na aplicação, 
de um emplastro à base de ortigas e enxofre quente...
Com traje não condizente;
Um de cartola branca e outro de cor cinzenta.
Tal como sua prosa;
Para um estava claro, para o outro escuro ,
para um estava frio e para o outro estava quente
Traziam à cintura, um molho de chaves pendente,
cada passo que davam, parecia que arrastavam correntes
Chaves das portas dos claustros de conventos.
Uma pá, uma picareta e uma corneta;
fazendo-se anunciar como funcionários do capeta, 
demolindo segredos, sepultados em divino segredo,
em paredes húmidas de tétricos conventos...
Parecia que tal caminhada estava embruxada. 
quanto mais andávamos mais me parecia
estar cada vez mais longe da chegada...
Para mal dos meus pecados, meus pés inchavam de cansaço,
já se revelava a fatídica presunção de malditos calos, 
lambiam o chão empoeirado, estavam feridos de tanto mau trato,
pois neles, já se vislumbravam buracos.
Também solas, já não tinham os sapatos...
Caminhada difícil, de estrada estreita em terra revolta, 
Caminhávamos noite inteira, atrás de noite,
pulando sombra, atrás em sombra,
como fantasmas, em hora de ponta sem atalhos, 
nem para a direita, nem para a esquerda... 
Seguia-se simplesmente em frente com passada larga, 
para não atrasar a fatídica chegada...
Levava em minhas mãos um molho de rosas já secas, 
outrora rubras e frescas, entremeadas com luxuriantes cardos 
com picos aguçados que minhas mirradas mãos dilaceravam...
Fui recebida com pompa e circunstância. 
Anjos de asas cor violeta com ar de manha muitos deles manetas, 
Asa decepada pelo capeta, com uma machada,
por misturar na laranjada, alho e água benta..
Desenrolavam à minha passagem,
carpetes vermelhas de mágoas negras... 
Tocavam sons alados arrepiantes com arpas e cornetas enferrujadas,
Trombones, tambores e gaitas de foles,
formando uma tumultuosa fanfarra engasgada que meus ouvidos azucrinava
Todos à dança se entregavam, bebendo em taças de prata, 
sangue de morcego misturado com excrementos de inteligências raras...
Derretiam-se os trombones, ao ser tocados com tal fervor, 
por tais tocadores entusiastas, como rios de lava. 
Os tambores ardiam como pavios torcidos. 
A triste fanfarra definhava e era relevante seu constante desafinar.
Ar pesado, cheiro a enxofre, almiscarado,
pelas minhas narinas entrava e os pulmões perfurava; 
Pesada essência, das almas que ali jaziam.
Ao longe, de liana em liana, macacos às dúzias e alaranjados,
enfeitavam a minha entrada com escorregadias,
cascas de banana, soprando diamantes 
em forma de berlindes por compridas canas...
Um deles, com ar de idiota atrevido e com desdentados sorrisos, 
suspirando segredou-me num guincho...
"...A vossa chegada é há muito esperada e desejada pelo nosso patriarca..."
Acordei, antes que o pesadelo acabasse e pensei;
---Ás vezes, quanto mais se bate no peito, mais se sonha com o Diabo!...
---E, ainda sentia no ar, aquele cheiro a enxofre almiscarado!...

Até ontem

Ana Rosa Cruz Pinto




Distância





DISTÂNCIA

Como gostaria que as distâncias, não estivessem tão perto de mim!
Todos os dias as desembrulho e embrulho, de lá, de tão longe...
Ouço seus alaridos de chegada e partida, sem as poder reter.
Como cinza ardida, num silêncio ensurdecedor que pesa como chumbo.
Sempre que vêm, abrem de novo a ferida que nunca cicatriza.
...de cores e indefiníveis perfumes

Até ontem

Ana Rosa Cruz Pinto




Natureza








Prisão










quarta-feira, 8 de junho de 2016

Crepúsculo





CREPÚSCULO

De voz cansada e sombria
Imponente catedral, de cúpula erguida
Onde até há pouco em seu altar
Iluminava um castiçal antigo
Derreteu-se aos poucos a cera
Num lacrimejo lamentado e enrijecido
Caindo num gasto consentido 
Agonizando em pingos de tristeza

Num silencioso consentimento
A luz aos poucos de si se esvai
Crepuscular e sombrio momento
Sombras que dele se farão ressuscitar
Fiadas canónicas de grãos de poeira
Que pairam no ar, procurando lugar
Para em qualquer canto repousar

O mocho irá sobrepor-se
Muito em breve com seu piar
Ao canto alegre e estridente
Da cotovia com seu cantar!
Tudo é breve nesta sinfonia
Cadente, ritmada e silenciosa
Mas sem nunca desafinar

O dia inclina-se em suas vestes tristes
Despe seu corpete apertado
De mais um dia passado
Liberta-se da retida claridade 
O cricrilar dos grilos perfura os tímpanos
No horizonte, o sol já pouco ilumina
O dia aos poucos se apaga
Num hibernar sentido
Tomando o seu lugar imagens tristes
Distorcidas e sombrias

O aroma do dia esvai-se de forma fraterna
É hora de virar mais uma página
Do livro de mais um manso dia
E ouvir outra melodia, um tanto inquietante
Reclamando ilusório descanço
Ao virar de cada ingreme esquina

Até ontem

Ana Rosa






Mágoa








Pressa








As Rosas





AS ROSAS

Quando à noite desfolho e trinco as rosas
É como se prendesse entre os meus dente
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das Primaveras
A doçura amarga dos poentes,
E a exaltação de todas as esperas.

Sophia Mello Brayner

Publicado por Ana Rosa Pinto