domingo, 25 de novembro de 2018

Azenha




Azenha

(...) De granito denso do chão dos ventos.
Pedra pura, opaca, da humidade fez do musgo,
seu único adorno e luxúria, dando honra à sua lisura
Dela, aos poucos, foi fazendo casa sua!
É escura e sombria ... nada pode ser mais puro
Tem o toque áspero de afiadas arestas
ou trilhos para marcar, quando mais não puder 
...sua própria sepultura!...
Lidou até ser velhinha, com orgulho e despeito,
rodando nos dias do ano inteiro,
tendo o rio como leito e de palha seu travesseiro!
Moendo grãos, transformando-os em farinha 
sem que trabalho final visse feito!
Era esta a razão de ser de sua vida
Mós de saudades, rodadas em seculares movimentos 
Mós de tormentos...mós de ontem e agora
Mós de pensamentos, como o rio,
sempre presentes a todas as horas...
Chora hoje suas ruinas ...  de dentro ...  e de fora!...
Grânulos a rebrilhar na massa de corroída mica,
quartzo, feldspato, brilha quando p'lo sol tocada!
Tem olhos e já não vê, sempre soube,  
que seu peso esmagava outrora a fome!...
Não tem boca, não come, mas fala ... 
... as pedras também falam
...em surdina, através das marcas do tempo
...em profundo silêncio
é pedra  redonda apenas.
Nela se concentra a terceira dimensão.
Não necessita de se verbalizar, fala de cor sua razão.
Se separada for de sua azáfama suprema, ou função
colocada numa e qualquer berma, pisada como chão
como se sua longa história fosse pequena, 
sem significado contada em vão
Separaríamos injustamente o corpo... do poema
Há como que um verso cinzelado e duro
em cada pedra colocada ao abandono no chão.
A muitos providenciou o pão
Aos poucos, ao olhar tanta indiferença 
no preservar tão preciosa recordação,  
endurece e tornar-se-á também em pedra de mó,
a válvula mitral de meu coração! (...)

Ana Rosa Cruz




domingo, 11 de novembro de 2018

O canto




O canto

O cantar da chuva
no xaile sombrio da noite,
fragiliza-me os ossos
mas é bálsamo que se liberta
no abraço do silêncio...
Recordo aquele doce que apetece
com sabor de tempo,
saudades congeladas em pedaços de sonhos,
apertos de mão,abraços e beijos
com molho de pegadas de memórias...
A noite cobre-me a pele fria,
mas enfeitiça-me os dedos finos
com pézinhos de dança
num formigueiro de música
com perfume de orvalho...

Ana Rosa


No alpendre




No alpendre

Os laçarotes brancos da chuva
deixaram de raspar
o lado de fora da janela,
a sombra macia do tempo
rega o musgo fresco da noite...
O alarido do rolar da pedra do isqueiro
acorda a harmonia do silêncio,
o cigarro luminoso sulca                  
os lábios tintos palpitantes
e pinta nos dedos
bigodes amarelos de nicotina...
O tango da fumaça dissolve-se
na réstia de lua perfumada
que fura o vidro da janela,
e com medo dos farrapos da solidão,
um cinturão de saudades
procura abrigo
debaixo da memória de um beijo...
As arestas do frio asfixiam
as lágrimas ternas da neblina,
o lento castiçal do firmamento
abre a joalharia das estrelas
e com elas construo o meu alpendre
suspenso nos músculos do céu....

Ana Rosa Cruz


São Martinho





Dia de São Martinho

(...) Celebra-se hoje o dia de
... São Martinho!...
Façam jus a este dia
Abram vossa adega,
convidem amigos
furem-se as pipas.
Celebrem a amizade,
em torno desta dádiva
preciosa da terra vinda.
Bem maior que estes, não pode haver
E se o Santo andar por aí,
convidado está,
a uma boa pinga vir beber
Provem vosso vinho,
desde a colheita, quieto vos espera.
Abençoado néctar dos Deuses!
bebam um ou dois "copos de três"
Com moderação,
...pois, "embebeda"!
Acompanhem com castanhas
Acabadinhas de assar, ou cozer
Bem quentinhas,
comam à vontade,
todas as que vos apetecer.
Dizem que as castanhas engordam!
A castanha não engorda!
Que frase absurda acabam de dizer!
Quem irá engordar, decerto serão vocês,
depois de muitas comer!(...)

Ana Rosa Cruz




Remendos



Remendo

(...) Sempre senti o que mostrei,
em verso ou em prosa escrita.
O meu outro lado escondido
Aquele gosto p’lo obtuso
escangalhado e descosido.
Quantas e quantas vezes
dos farrapos de minha alma
costurei meu próprio vestido?
Quantas, não lembro bem
e se o lembrar também não digo!
Tudo o que sinto é remendado
e se soubesse medidas certas tirar
não erraria tanto!
Ás vezes o remendo, é menor que o buraco
---Não comentem!...
 ---Pois errar é humano!
Com tecidos que me vão dando,
faço jus à minha humilde habilidade
---O que muitos desprezam,
outros estão desejando!
Depois, do delido cerzido,
fica como novo!
---Ninguém tem nenhum igual ao meu,
nem tão pouco parecido!
Pronto está, a ser vestido!(...)

Ana Rosa






quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Pardais



Pardais

(...) Quando partem os pardais
apaga-se parte da aguarela da cidade
impossível ser restaurada.
Nada será como dantes.
Chuva miudinha, vem sem ser convidada 
A cidade fica despida 
de alguns dos seus encantos, 
vestindo-se de outros tantos!
Pálidas folhas morrem uma a uma,
tombando nas escadarias de mármore.
Árvores  vestidas de mil cores;
amarelos, castanhos e verdes desmaiados.
Os plátanos da cidade
despedindo-se de sua nobreza,  
altivez e vaidade, vergam-se hoje
recebendo com vénias o Outono,
com vestias de oiro e brocados.
Estremecendo ao sopro de fria brisa
tenores cheios de graça e encanto
estão agora de partida.
Em jeito de pequenos marialvas
nas asas, têm como bagagem 
o poema d'um fado.
Nas cordas vocais, uma guitarra tocando
nunca esquecendo Lisboa, 
enquanto vão voando,
como se a quisessem levar também consigo
para lugares distantes, 
mais amenos e menos frios.
Quando um fado no outono se canta
a saudade dos pardais, é tema  que encanta!
De voz embargada, o fadista
questiona entoando no seu canto,
como um bando de pequenos pardais  
pode ocupar em nossas vidas 
um espaço tão gigante! (...)

Ana Rosa