quinta-feira, 31 de janeiro de 2019




Bailado de palávras

O algodão negro das nuvens
cobre o peito leitoso da lua...
O inverno,constipado,
assoa as narinas chorosas
ao lenço ensopado de chuva...
Pestanejam estrelas
salpicando de luz
o cabelo da noite
que vagueia nos miados do vento...
Nos arames da solidão,
procurando na memória
o roubo das labaredas da infância,
o dente dourado da chama do isqueiro
morde cabeças de cigarros
e o ziguezague do fumo,
ao coçar a barba da saudade,
roda o gelo no copo da vida,
amparando o coração,
com pequenos abraços de Deus...
De barriga açucarada,
o café,destemido,
pula do berço da chávena
para a porta estreita da boca,
enquanto as beatas,apertadas,
vão rezando,curvadas,
no fundo do convento do cinzeiro...
Do bailado das palavras,
vem o sono,a pé coxinho...
Entra nos olhos cansados
e deita-se,
na almofada dos anéis das retinas...

Crcruz

@Direitos reservados


Herança



Herança

(...) ...Casa deserta, existência de vida própria
Mil ecos que acordam, o abrir e fechar de janelas,
o ranger de uma porta.
Murmúrios terminados, vindos de todos os lados
Ao longe, o arvoredo dorme calado
Todos os sons a mim chegam,
timbrados, num transitório coado...
Há presenças de coisas sós,
únicas na história de cada voz...
Longe do tempo, despertam recusas as sombras
Há espaços vazios, cheios de poemas profundos
que poderiam até ser os mais puros e lindos.
Há sonhos que terminam, ecos por encontrar!
E eu, ficarei aqui, à espera de certezas,
num devagar balouçar...
Enquanto lá fora, 
as sombras passam e voltarão a passar
Vejo-as, sem as poder  olhar...
Elas tocam-me... Sinto-as... sem lhes poder tocar!
O vento entre as árvores nuas,
entoa esquecidas melodias.
Nunca nelas existiu amor, nem infantis alegrias
Hoje são o nada... o vazio!
Pensamentos, somente pensamentos
Hoje, uma dor fugaz, a presença de um abismo,
onde a morte jaz...
num amargo e inesquecível infinito. (...)

Ana Rosa






sábado, 26 de janeiro de 2019

Os...



Os
(...) Sou da rua 
daquela raça de gente dura,
ignorante, de gestos ásperos e rudes
sem esperança ou futuro, 
como árvore bruta, seca, erétil.
Que não se queda, nem mexe,
até hoje estéril e sem útero 
Sem saber ao certo para que serve!... 
Sou do outro lado do muro, 
impotente tentando ultrapassar
sua imponente altitude.
Separação entre o limpo e o sujo, 
desvio de rumo, maldição,
apelidado de muro da contradição.
Mãos calejadas e feridas do sacho.
Nossa pua e também oração
Aspeto anémico, olhar pálido e ausente
acariciado somente, p'los pingos da chuva roçada a vento!
---E de tão pouco manifestamos contento!
Desprotegido, insignificante, 
quase insensíveis ao sofrimento 
---E ao mesmo tempo tão carentes!...
Analfabetos, subnutridos de alma destroçada 
sem pátria e de língua decepada!
Não há mal que se nos encoste,
p'la graça de Deus, ou do Diabo 
p'ra além de nossa franzina e fraca figura
bafejados fomos por alguma sorte
---Tudo com tempo se cura,
com a vida, ou morte!...
Nestes momentos, sempre se nasce de novo!
Quando a vida em nossas mãos esmorece, 
logo nossa expressão, voa e ecoa.
Somos aquela assombração, ou encosto,
que pede um naco de broa,
que muito a humanidade nos deve!
De alma adormecida,
em paisagem baça e agreste.
Luz escondida, sem raios de esperança,
quando anoitece, nossa raiva endurece.
---Um real mundo à parte!
---Que nem sobe, nem desce!
---Sujo, descrente, nauseabundo, insignificante
que ninguém sente falta ou saudade
como algo dispensável!
Jamais sonhos tive em mente
com a esperança sempre de mim ausente
Sou daquela raça de gente dura
---Com sorriso triste, mas tão cheio de ternura!...
--- Já não sonha, porque sonhar nunca aprendeu!
Sem dom algum, ou vontade de coisa alguma
---Nunca sonhou e nem sonhará nunca!
---O muro, seus sonhos apagou! 
Minha infância, era fria e sombria 
sempre fui aquela criança de infância perdida, 
no rosto acre dos dias 
Nunca se encontrou e para sempre se perdeu
em paisagem vazia
apertando com tremor, a luz das trevas 
em minhas mãos pequeninas,
luz única visível e possível...
Somos a aleluia da existência
ferida que dói diariamente, sem cura
por fora, poema tatuado até à medula
e por dentro, espinho cravado,
até à saliência de nossa corcunda...
De alma adormecida em paisagem baça,
luz escondida, sem raios de esperança.
Um mundo à parte, nu e sem graça
A esperança, sempre de mim ausente, 
sem saber qual minha origem ou nascente. 
---Todos somos irmãos, pais, 
filhos de toda a gente!...
---Sou da raça que em nada acredita e pensa,
"que viver dignamente,
não é para gente que nada significa"!
---Sou os que sofrem a dureza da vida,
numa incompreensão incompreendida.
---Sou todos os infelizes, que o sol não beijam
e doces brisas esquecidas, que também
já não desejam!... (...)

Ana Rosa






sábado, 19 de janeiro de 2019

Gaivotas



Gaivotas

(...)...as gaivotas morreram!
Todas as que voavam mais longe,
perto do pôr do sol,
atraídas p'lo mais belo dourado isco
que se esconde além:
junto daquela linha,
 que  mal se distingue
nas portas do paraíso!
Linha, onde o céu e a terra vem unir-se,
não é mar nem rio
nem tão pouco barco à vela
Só as mais belas partiram
Oh sim, as mais belas,
que meu olhar havia visto!...
Procurando longe, o derradeiro início
de um tempo inteiro! (...)

Ana Rosa




domingo, 13 de janeiro de 2019

Espaço de vida



Espaço de vida

(...) ...Simétrico desejo de querer viver!
Na mão que risca o papel da nossa distância!
Viver, é ouvir toda a terra fresca quando canta, 
em sons de sua sonora garganta.
Viver é querer destruir fronteiras 
do relógio parado no tempo, 
escutar o fluir das vozes largadas ao vento.
Viver, não é obrigar a mão a colecionar 
palavras em ternos momentos
Viver, é ter aquele olhar de neblina 
com névoas de outras vidas, 
tantas e tantas vezes,
com pálpebras descaídas.
Viver, é chorar a saudade num regaço, 
afagado por um olhar que escalda.
Viver, é amar o dia, que se despe 
na escuridão acesa entre brasas 
de meu corpo cansado e ardido.
Viver, é sentir a vida renascer da própria vida.
Sentir o que tem e não tem sentido.
Correr no despertar de fora para dentro,
sentido no despertar da ponta dos dedos.
Sente!...Viver, é fugir da vida adormecida!...
Viver é uma jornada de repouso, 
ninho feito de sonhos e linho.
Quando em toda a casa é madrugada, 
será porque a vida é o principal motivo! (...)

Ana Rosa