domingo, 23 de outubro de 2016

A Noite é uma Mulher





A NOITE É UMA MULHER

(...) A noite é uma mulher, 
Doce, nua e solitária...
A lua tece em seu astro, despido 
O mais belo e vaporoso vestido,
de pura e fina cambraia...
Com o brilho de cintilantes estrelas, 
adornado... 
Repleta de sonhos rendilhados 
Cheios de plena graça e lindo colorido
Como se no céu, surgissem miragens, 
Soltas palavras de reluzente brilho
Belos sonetos de poesia cor prata...
Colhidos num espaço,
de absolvição perfumada...
De alegres e estreladas gargalhadas
Como envaidecido canto; 
duma cigarra que se insinua
na solitária noite, prateada...
Sem nome, sem tempo, 
de tudo desligada...
Como areia pura e virgem, se entrega
pelo vento é levada,
Adormecendo nas dunas,
solta na praia...
Num sentir de descoberta,
de forma e de vaga incerta;
Como quem vê pela primeira vez, 
num espelho de água clara e pura
seu belo e cintilante reflexo de olhar inquieto...
Flutuando sob vagas altas,
Abraçar e por elas ser abraçada
Como doce e agreste entrega, 
Num despertar de alma
Gestos perdidos e achados, 
Na espuma deixada na margem...
Em seus olhos receberá, 
astros bordados,
na bainha de sua saia de algas...
O metal das horas para...
Para que a noite passe ,
Deslizando suavemente
em seu cristal de quartzo (...)

Até Ontem

Conceição Ana Rosa Cruz

Arte:Wang Kun




Servos





SERVOS 

(...) Virulento alvorar, nascia naquele dia, bem cedo
Tristeza no cansado olhar, reflete o presente,
Presente de um indicativo, do verbo medo!
Lacrimejo constante lavava sujos rostos, barrentos
Que orgulhosa escravidão, teimava em manter em segredo 
Estradas desenhadas no rosto, tecidas de negro 
Abriam passagem, formando riscados e dolorosos regos
Fermentadas lágrimas, em poças jaziam estagnadas
Tomava corpo, no rosto com expressão de chagas
De coloração crónica, em palidez exacerbada 
Denunciando um alvorar repleto de tristeza e pavor atento 
Segredavam entre si, em tom baixo, com voz trémula e pendente,
Em confessionário centenário, repleto de pecados pungentes
Como vela apagada pelo sopro fraco e dormente
Refletindo a escuridão de uma boca deformada e borbulhenta 
A porta das palavras trancou-se a sete chaves, 
Em boca amordaçada, não entra mosca, nem sai palavra,
Língua sem boca, não come pão!
Dando vida aos silenciosos sons fúnebres que sob eles pairavam,
Num vacilar de ambiguidade, embalando restos de vivacidade
Em tempos passados coroados, agora, prestes a findar!
Como a todos os outros, eram iguais;
..."a causa de todas as causas",
Calosidade da idade avançada, deformação de sua negra imagem
Que antes do tempo se entrega, com receio que se estrague!
Réstias do pecado original, herdado do beiral maternal,
Sem qualquer originalidade tácita, 
Como marca de água, feita com ferro em brasa.
Vincava-lhes as rugas da alma, de luminosidade já escassa
Marcados pelo silêncio, da foice e da enxada!
Mar de lágrimas vomitavam rios de sangue 
Lamacentas margens, na foz transbordante,
Arado abrindo socalcos, em rostos de pranto
Terra árida e incultivável, ferindo-lhes a carne, 
Como cortante e bem afiado punhal!
Remendados da fatalidade;
Vestidos de tecido árido de cor rubra apagada.
Triste e inflamado drama, viviam entre a água e muros de lama
Barro que se desmorona, a cada grito entalado na garganta
A noite caía-lhes nos braços, com estrondo; nua e suja
Num encardido pijama.
Tudo era visto mais claro, sob um olhar obtuso no escuro
Reflexos de si mesmos, em paradas e espelhadas águas,
Os impregnava de fama como apagado carvão
Que já fora brasa em chamas!
Tudo lhes fora tirado, nada mais lhes restava,
Da sua gloriosa e etérea dignidade,
Talhando-lhes a sina na lama; sem uma única flor na campa
Esculturas agrestes de realidades estática,
Feitas de água, sal e vinagre, tendencial sabor eclesiástico
Nada mais eram eles; servos da eterna gleba,
Arredados da cidade, que os viu nascer e criado
Perseguidos do estigma da lepra, e que de mau-olhado
Seriam também, dotados!
Mestres do eterno, à humilhação sentenciados,
Mas tão mal interpretados!
Temente ao Céu, mas erraticamente, 
As profundezas do Inferno, excomungados!...
Devedores de créditos em todo o canto e lado, nada mais,
Lhes seria dado e muito menos, “fiado”!
Caminhantes no pó da terra, questionando sua diferença
Aos olhares dos demais, no conceito genérico de totalidade...
Buscando justiça na eternidade, caminhavam sobre terra vermelha
Sem alegria e vaidade como "algo" que nasceu, 
Para ser; dia atrás de outro dia, condenado!
Viviam no sonho da crença, como fatal doença
Sinal de uma cruz!...
Que os recompensará um dia, de tal humilhação imensa
Mas que jamais os livrará; 
De tão pesada, eterna e original sentença!(...)

Até Ontem

Ana Rosa Cruz

Arte: Sergio Marties 
(As divas)



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segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Miseráveis







Miseráveis

(...) Suas casas construíram
Umas nas noutras, amontoadas
Sobre o pântano vermelho.
Ali, os miseráveis reinavam;
Era aquele, o seu mísero reino!
Amparando as veias, pelo vento,
Tocavam suas feridas...
Ensanguentadas,
Sem que o tempo as sarasse.
Com o sangue delas brotado,
Pintavam casas inteiras,
Da última à primeira telha
Sem existência de telhado.

A água da chuva,
Esse milagre da natureza,
Dádiva divina e pura
Por vezes bem turva,
Retida com o máximo esmero,
Era guardada com respeito
Numa velha celha de madeira
Como sendo sua única fortuna!

Terra com nome de "Sagrada"
Que de sacra nunca e nada teve.
Ausente de qualquer futuro
Ou glorioso passado
Que algum dia alguém
Pudesse e quisesse relembrar
Ou tal miséria, enaltecer!

Rostos fechados
Sem janelas na alma
Sem único sorriso ou esgar.
Olhar cabisbaixo e encurvado
Batendo o chão
Como se olhassem o mundo
De cima para baixo
Ao nível do térreo calcanhar!

Terra de aspeto assombrado
Por um diário ritual macabro.
Massacrada terra essa
Que para muitos era somente
Uma relíquia fúnebre, bem pesada!
Muitos a ela tudo entregaram
Sangue, suor e a própria carne.
Suas próprias cinzas,
Também lá teriam lugar
Ainda que prematuramente!
A vida era uma linha curva
Como foice afiada e lisa,
Com a morte bem perto
E nunca indecisa!

De um magro corpo desidratado
Já sem qualquer substância
Força do saudoso passado
Como única boa lembrança.
Vidas que aos poucos findavam
E nada mais tinham para dar.
Entregavam a alma a Deus,
Se este ainda a quisesse aceitar.
Despiam suas vestes carnais
Delidas e remendadas, 
Tal era seu estado de alma!
Cerravam as pálpebras outonais
Ao pó da terra avermelhada
Suas pobres ossadas entregavam!

Pela primeira vez na vida
Como verdadeira magia
Voavam, sem ter aprendido a voar
Algo que há muito não acontecia.
Tombavam como frágeis pardais,
Despiam as penas, do seu penar
Sem para trás olhar
A vontade de ir, superava a de ficar.

Já nada germinava por ali
Seu calvário, era mais que pesado.
Terra de todos e de ninguém
Todos os dias, era noite de finados!
No sepulcro,
Todos os miseráveis eram abrigados,
Todos eram iguais!
Tão iguais...iguais demais! (...)

Até Ontem

Ana Rosa Cruz

Arte : Ettore Aldo Del Vigo



Tão Perto








Sábios








Acordár






ACORDAR

(...)A noite acaba por se deitar
Sorrateiro, espreita já o madrugar
Para com timidez a terra alegrar.
Ao longe, audível o ribeiro
Deslizando em seu leito solto
Alagando suas margens
Em tom zombeteiro e maroto
Sem que "dique" lhe seja imposto 
Sua levada abundante cristalina 
Beijando as margens
Alagando-as de frescura na matina.
A nada se pode comparar a tal terra
Das pedras jorram rios de mel e leite
Dando ao meu acordar,um saciado
e doce deleite!

Lugar único
É como sonhar acordada
Sem querer acordar
Só em sonhos há lugar a tal beleza.
Gira a velhinha roda da azenha
Com doçura... mas buliçosa
Roda roda, sem nunca parar.
Lugar de silêncio barulhento
Paz, muito por ali sobra
Recordando-me momentos de infância
Como dádiva dos deuses
Que me faz sonhar ao fechar os olhos!

O cheiro da terra molhada
O cantarolar do galo
O barulho da casa, a madeira a estalar
Os ratitos no sótão, com seu incansável ratar
Hora de acordar e apreciar
Aquele momento primeiro
Em que as rosas desabrocham
E se preparam
Para ao mundo se entregarem!
Intenso perfume paira no ar
Orquestra de trompetes perfumadas
Hinos de luz e cores luminosas
Para a natureza elogiar
Para tudo e todos perfumar!

Todos os dias é assim!
Há sempre rosas a desabrochar
Nos muros e arcadas do meu jardim
Surge no roseiral uma alvorada
De beleza e vida inigualável
Com históricas notas musicais
Que jamais esquecerei!
O nascer das rosas na madrugada
Sempre recordarei com emoção
Como a mais terna recordação.
Florescem rosas em debandada
Como que almejando ter asas e voar
Elevando seu perfume no ar
Para todos os cantos e lugares
Para que com seu odor
Todos se possam deliciar.

Veste-se o jardim com novas cores
Como se fora domingo
O dia de melhor trajar
Pássaros agitados batendo asas
Num harmonioso e estridente chilrear
Clamores intensos de glória
Que só existe naquele lugar
Com cantigas de bons dias
Que a natureza me presenteia
Em cada dia do meu acordar
Se Deus existe...
Só neste lugar pode estar(...)

Ate Ontem

Ana Rosa Cruz

Arte : Daniel Gerhartz

Tão Perto 1






Solidão






Invísivel






(...)INVISIVEL

Pessoas feitas de partida
Matéria volátil e indefinida
Estão sempre presentes
Em lugar e tempo incerto
Parecendo estar bem longe
Estando ali tão perto.
Escrito profundo e resumido
E até mesmo inacessível
Sem fazer qualquer sentido.
Sem nunca terem chegado
Nem tão pouco de lá partido
Estão bem dentro de nós
Como algo que é sentido
Sem nunca se ter visto(...)

Até ontem

Ana Rosa Cruz

Arte: José Royo



Forma de Estár







Diques





DIQUES

(...)Passada a tempestade,
Trocam-se palavras
Ao som de maré baixa.
O hábito, fez delas diques de margem
Odor de maresia em águas paradas
Retidas na memória e na alma gravadas
Como lágrima, com flor de sal temperada
Nem que seja para lembrar
Que entre nós já nada se diz
Que apenas valha,
Para impedir a maré de avançar...
O dique somente se mantém
Até que coragem haja, para o derrubar
Quando todo ele, eu o demolir,
Partirei!
Terás de aprender a nadar
Ou muita água do mar, hás de engolir!(...)

Até Ontem

Ana Rosa Cruz

Arte: Kemal Kamil



Distâncias







Dúvidas







Castas






Pão Breu








PÃO BREU

(...)Recuso esse pão negado
Com sabor a amor amaldiçoado
Alimento que a fome sana
Como dádiva d'um céu enrolado
Depois de açoitado e crucificado
E de breu pintado!

Em malga de dor amassado
Sem fermento levedado
Cevada em farinha, amarga
Água com fétido odor misturada.
O sal encobrirá sua amargura
Dando-lhe um sabor salgado!

Minhas mãos queimam
Ao tirar dele cada bocado
De tão mau grado dado
Pão, que nunca a fome retarda.
Pão amassado ao sol
Sob um calor abrasador
Com o tilintar de pulseiras de lata,
E o batucar num velho tambor.

Ao longe, cantigas crioulas
Ouvem-se como sombras
Nas cubatas de terra vermelha
Apoiadas em velhos troncos
Dum passado amaldiçoado(...)

Até ontem

Ana Rosa

Arte Richard Schmid




Genéricos






Á Margem





Letras





LETRAS

Teu cheiro de jasmim
Colecciono letras de amor
Com elas construo frases de saudade
Escrevi o teu nome na areia
Desenhei um bouquet de rosas
Azuis da cor do céu
Com conchinhas fiz um castelo
Reguei as rosas com lágrimas
Lancei-lhes o teu perfume
O mar, silenciosamente, vinha roubar
Envergonhado partiu, enrolado de saudade
As rosas cristalizaram com cheiro de jasmim
A gaivota roçou-me os lábios
De doce sabor a sal sussurrou-me baixinho
O que é teu ninguém te rouba……
e eu vivo em ti……
o teu para sempre jasmim

Laia



Olhos de Avelã


























Olhos de Avelã

Teus olhos
casca de avelã
entre golfadas de vento
tanta alegria
num jeito menino
também cantigas
flores do campo
colhidas pela tarde
nesta estrada
à beira do infinito.
Teus olhos
poesia fresca
rendilhando a vida.

Laia