domingo, 23 de outubro de 2016

Servos





SERVOS 

(...) Virulento alvorar, nascia naquele dia, bem cedo
Tristeza no cansado olhar, reflete o presente,
Presente de um indicativo, do verbo medo!
Lacrimejo constante lavava sujos rostos, barrentos
Que orgulhosa escravidão, teimava em manter em segredo 
Estradas desenhadas no rosto, tecidas de negro 
Abriam passagem, formando riscados e dolorosos regos
Fermentadas lágrimas, em poças jaziam estagnadas
Tomava corpo, no rosto com expressão de chagas
De coloração crónica, em palidez exacerbada 
Denunciando um alvorar repleto de tristeza e pavor atento 
Segredavam entre si, em tom baixo, com voz trémula e pendente,
Em confessionário centenário, repleto de pecados pungentes
Como vela apagada pelo sopro fraco e dormente
Refletindo a escuridão de uma boca deformada e borbulhenta 
A porta das palavras trancou-se a sete chaves, 
Em boca amordaçada, não entra mosca, nem sai palavra,
Língua sem boca, não come pão!
Dando vida aos silenciosos sons fúnebres que sob eles pairavam,
Num vacilar de ambiguidade, embalando restos de vivacidade
Em tempos passados coroados, agora, prestes a findar!
Como a todos os outros, eram iguais;
..."a causa de todas as causas",
Calosidade da idade avançada, deformação de sua negra imagem
Que antes do tempo se entrega, com receio que se estrague!
Réstias do pecado original, herdado do beiral maternal,
Sem qualquer originalidade tácita, 
Como marca de água, feita com ferro em brasa.
Vincava-lhes as rugas da alma, de luminosidade já escassa
Marcados pelo silêncio, da foice e da enxada!
Mar de lágrimas vomitavam rios de sangue 
Lamacentas margens, na foz transbordante,
Arado abrindo socalcos, em rostos de pranto
Terra árida e incultivável, ferindo-lhes a carne, 
Como cortante e bem afiado punhal!
Remendados da fatalidade;
Vestidos de tecido árido de cor rubra apagada.
Triste e inflamado drama, viviam entre a água e muros de lama
Barro que se desmorona, a cada grito entalado na garganta
A noite caía-lhes nos braços, com estrondo; nua e suja
Num encardido pijama.
Tudo era visto mais claro, sob um olhar obtuso no escuro
Reflexos de si mesmos, em paradas e espelhadas águas,
Os impregnava de fama como apagado carvão
Que já fora brasa em chamas!
Tudo lhes fora tirado, nada mais lhes restava,
Da sua gloriosa e etérea dignidade,
Talhando-lhes a sina na lama; sem uma única flor na campa
Esculturas agrestes de realidades estática,
Feitas de água, sal e vinagre, tendencial sabor eclesiástico
Nada mais eram eles; servos da eterna gleba,
Arredados da cidade, que os viu nascer e criado
Perseguidos do estigma da lepra, e que de mau-olhado
Seriam também, dotados!
Mestres do eterno, à humilhação sentenciados,
Mas tão mal interpretados!
Temente ao Céu, mas erraticamente, 
As profundezas do Inferno, excomungados!...
Devedores de créditos em todo o canto e lado, nada mais,
Lhes seria dado e muito menos, “fiado”!
Caminhantes no pó da terra, questionando sua diferença
Aos olhares dos demais, no conceito genérico de totalidade...
Buscando justiça na eternidade, caminhavam sobre terra vermelha
Sem alegria e vaidade como "algo" que nasceu, 
Para ser; dia atrás de outro dia, condenado!
Viviam no sonho da crença, como fatal doença
Sinal de uma cruz!...
Que os recompensará um dia, de tal humilhação imensa
Mas que jamais os livrará; 
De tão pesada, eterna e original sentença!(...)

Até Ontem

Ana Rosa Cruz

Arte: Sergio Marties 
(As divas)



Sem comentários:

Enviar um comentário