segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Miseráveis







Miseráveis

(...) Suas casas construíram
Umas nas noutras, amontoadas
Sobre o pântano vermelho.
Ali, os miseráveis reinavam;
Era aquele, o seu mísero reino!
Amparando as veias, pelo vento,
Tocavam suas feridas...
Ensanguentadas,
Sem que o tempo as sarasse.
Com o sangue delas brotado,
Pintavam casas inteiras,
Da última à primeira telha
Sem existência de telhado.

A água da chuva,
Esse milagre da natureza,
Dádiva divina e pura
Por vezes bem turva,
Retida com o máximo esmero,
Era guardada com respeito
Numa velha celha de madeira
Como sendo sua única fortuna!

Terra com nome de "Sagrada"
Que de sacra nunca e nada teve.
Ausente de qualquer futuro
Ou glorioso passado
Que algum dia alguém
Pudesse e quisesse relembrar
Ou tal miséria, enaltecer!

Rostos fechados
Sem janelas na alma
Sem único sorriso ou esgar.
Olhar cabisbaixo e encurvado
Batendo o chão
Como se olhassem o mundo
De cima para baixo
Ao nível do térreo calcanhar!

Terra de aspeto assombrado
Por um diário ritual macabro.
Massacrada terra essa
Que para muitos era somente
Uma relíquia fúnebre, bem pesada!
Muitos a ela tudo entregaram
Sangue, suor e a própria carne.
Suas próprias cinzas,
Também lá teriam lugar
Ainda que prematuramente!
A vida era uma linha curva
Como foice afiada e lisa,
Com a morte bem perto
E nunca indecisa!

De um magro corpo desidratado
Já sem qualquer substância
Força do saudoso passado
Como única boa lembrança.
Vidas que aos poucos findavam
E nada mais tinham para dar.
Entregavam a alma a Deus,
Se este ainda a quisesse aceitar.
Despiam suas vestes carnais
Delidas e remendadas, 
Tal era seu estado de alma!
Cerravam as pálpebras outonais
Ao pó da terra avermelhada
Suas pobres ossadas entregavam!

Pela primeira vez na vida
Como verdadeira magia
Voavam, sem ter aprendido a voar
Algo que há muito não acontecia.
Tombavam como frágeis pardais,
Despiam as penas, do seu penar
Sem para trás olhar
A vontade de ir, superava a de ficar.

Já nada germinava por ali
Seu calvário, era mais que pesado.
Terra de todos e de ninguém
Todos os dias, era noite de finados!
No sepulcro,
Todos os miseráveis eram abrigados,
Todos eram iguais!
Tão iguais...iguais demais! (...)

Até Ontem

Ana Rosa Cruz

Arte : Ettore Aldo Del Vigo



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