sexta-feira, 12 de maio de 2017

HORAS DE PONTA






Horas de ponta

(...) De si própria sentia nojo! 
A vida deu-lhe mãe madrasta,
como único consolo...
Caminhando na frieza da calçada, 
nela se fez enteada
sem amor e o calor de um colo!
Para outro?
Nada mais era, que simples entojo !
Sem que por alguém, algum dia 
tivesse sido filha amada.
Tinha em si, a marca da natureza,
Estonteante beleza, 
Olhar de um rio,
brilhando em transparência
Magoa d'uma ausência de infância
que desesperadamente queria ser existência!
Diariamente pela vida era arrastada, 
escorregando entre pedras
dum riacho, com ausência de margens 
Rio silencioso sem foz, 
Sem saber como desaguar o som de sua voz
submersa e presa em um poço 
Afundando-se em pantanal lodoso
Desconhecendo que também, era digna de poder ter um sonho,
e que a vida não tem nós somente!
Sem que para tê-lo, tivesse que pagar um preço!
Entre o tombo da noite 
e o nascer tombado da madrugada
A alma do seu corpo se desligava, como ave rara, 
pousada entre o punho e a espada
Sua vida é um fardo, 
um fado cantado à luz dum som
duma longínqua e velha guitarra!
Prazer encenado, em troca de assobios e algumas palmas!
Flutuando em águas profundas e escuras
morada do nojo, decepções constantes 
eram-lhe diariamente ofertadas! 
Assobiavam-na, quando por ela passavam...
Olhavam-na, com olhares de gozo
Não podia dizer não!
Vestida como estava
ninguém enganava, era um retrato falado 
que ninguém gostava de ver, ouvir e falar...
Do submundo da noite, 
que o dia marginalizava
tudo condizia com a função adoptada!
Negro arrojado, como negro corvo pousado
em esquina mal iluminada
maquilhagem insinuada,
meias de rede com liga rendada 
sapatos de salto alto
andar provocante, 
balançava-se atraindo o desejo
com passos de pecado hábil.
Em seus lábios rubros e palpitantes passeava, 
a chama sorridente dum cigarro, 
que avidamente fumava até à ultima passa!
Vivo painel publicitário de marca de cigarro
sem acrescentar qualquer centavo ao fato.
Vendia um pouco de si, 
por uns míseros trocados...
Irrevelada tristeza no coração, 
fraqueza não mostrada.
Em cada chamada, um olhar lacrimado
apressadamente aconchegado, 
na ponta do lenço encarnado!
A luz da lua, dela pena tinha, 
da sua triste sina...
Esconde-se numa nuvem, 
mantendo as ruas escuras
encobrindo o seu papel de dama da noite
naquele palco da vida, 
sem estrela guia alguma
que na vastidão da noite 
escura e sombria,
tem o estatuto de puta (...)

Até ontem

Ana Rosa Cruz






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